28% DAS NOTAS PAULISTAS DÃO CRÉDITO ZERO A CONSUMIDORES
Programa se propõe a devolver 30% do ICMS recolhido aos cofres estaduais
Governo atribui crédito zero ao recolhimento antecipado do imposto; lei deveria favorecer consumidor, diz jurista
A publicidade da Nota Fiscal Paulista afiança: “Quanto mais você pede, mais você ganha”. No entanto, ao abrir o site da Secretaria da Fazenda para conferir o seu extrato, o consumidor constata que, em média, 28% das notas resultam no decepcionante crédito zero.
O levantamento foi feito pela Folha, que examinou 2.339 notas fiscais de quatro moradores da cidade de São Paulo com perfis de consumo bem diferentes.
De acordo com o site Reclame Aqui (www.reclameaqui.com.br), de janeiro a outubro de 2013, 3.160 reclamações foram registradas sobre o programa, que se propõe a devolver ao comprador 30% do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) efetivamente recolhido aos cofres estaduais.
No ano passado, houve 2.020 queixas, a maior parte relativa aos créditos zerados.
“Peço a Nota Fiscal Paulista e sempre que calculam o valor dá zero”, protestou, no site, uma consumidora.
O que muitos consumidores estranham é que, comprando a mesma mercadoria por dois meses consecutivos, no mesmo estabelecimento, o crédito da Nota Fiscal Paulista pode ser nulo em um mês e existir no seguinte.
Para o jurista Ives Gandra Martins, não há ilegalidade na farta distribuição, pelo programa, de créditos zerados. Mas, segundo ele, a lei que regula a Nota Fiscal Paulista precisa ser aprimorada:
“Os consumidores deveriam ter sempre o direito ao crédito em função do ICMS incidente sobre a operação objeto de sua compra constante na nota fiscal”, diz.
MAIS ARRECADAÇÃO
O programa foi criado pelo governo do Estado em 2007 com o objetivo de engajar o consumidor no combate à sonegação do ICMS.
De acordo com Valdir Saviolli, coordenador da Nota Fiscal Paulista, da Secretaria da Fazenda, o programa conseguiu ampliar em 23% os recursos provenientes do ICMS no Estado. Saviolli justifica os créditos iguais a zero dizendo que eles decorrem da chamada “substituição ou antecipação tributária”.
“Se o estabelecimento tiver um crédito na Secretaria da Fazenda, não terá de pagar nada de imposto e, portanto, o consumidor nada receberá naquele mês”, diz.
O que acontece hoje em dia é que a própria Secretaria da Fazenda estimula as grandes redes varejistas, que compram diretamente da indústria, a recolher antecipadamente o ICMS.
Na prática, quando a mercadoria é adquirida pelo consumidor, o imposto já foi pré-pago, sobrando pouco –ou nada– para ser distribuído ao cidadão pelo programa.
Segundo Ives Gandra, o crédito deveria ser recebido pelo consumidor “independentemente de o estabelecimento comercial ter ou não obrigação de recolher o tributo naquele mês”.
Nos quase seis anos de vigência da Nota Fiscal Paulista, 15,6 milhões de consumidores cadastraram-se no site www.nfp.fazenda.gov.br para receber créditos.
O programa distribuiu R$ 6,7 bilhões para pessoas físicas até outubro deste ano. Entidades sem fins lucrativos receberam R$ 254 milhões.
ONG de bairro é recordista em créditos de nota fiscal
Com R$ 4,3 milhões, Projeto Casulo recebe mais que entidades como AACD
Lei não proíbe estabelecimento de entregar todas notas sem CPF à entidade de sua preferência
Localizado diante de uma favela em vias de urbanização no Real Parque (zona sul da cidade de São Paulo), o Projeto Casulo é a entidade de assistência social recordista de arrecadação de créditos com a Nota Fiscal Paulista.
Um total de R$ 4.309.358 recheou os cofres da organização de janeiro a outubro deste ano.
Em 2012, o Projeto Casulo obteve R$ 1.110.186 de créditos da nota fiscal paulista. Só essa fonte de receita respondeu pela metade do total de recursos captados pela ONG.
Neste ano, o Casulo mais do que quadruplicou esse tipo de ganho.
O surpreendente é que uma ONG de bairro tenha arrecadado notas fiscais em número muito maior do que entidades gigantes e tradicionais, como a Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (3ª no ranking de arrecadação), a Fundação Antonio Prudente, que sustenta o Hospital do Câncer (10ª), ou a Associação de Assistência à Criança Deficiente, AACD (16ª).
DOAÇÃO “INDIRETA”
Não é novidade que recursos da NFP possam ser legalmente destinados a ONGs. O consumidor se acostumou a ver urnas para depósito de cupons fiscais sem indicação de CPF espalhadas pelo comércio.
O “pulo do gato” das entidades foi perceber que a lei não exige esse ato de vontade do consumidor.
A lei da Nota Fiscal Paulista não proíbe o estabelecimento de, unilateralmente, entregar todas as notas fiscais sem indicação de CPF à entidade cadastrada de sua preferência.
No caso do Casulo, segundo o próprio relatório de atividades de 2012, as empresas Decathlon, Leroy Merlin, Atacadista Roldão e Shopping Jardim Sul estiveram entre os principais doadores de cupons fiscais para a entidade, mesmo que nenhum consumidor a tenha indicado.
CONSUMIDOR X ONGS
Nos seis anos de vigência da NFP, 3.900 entidades receberam R$ 262 milhões (esse montante é suficiente para comprar 8.200 carros populares). Elas, que faturaram R$ 287 mil em abril de 2009, passaram a engordar seus caixas com um total de R$ 9,9 milhões em julho de 2013.
Na prática, para a pessoa física que declara o seu CPF no caixa, isso resulta em créditos cada vez menores, já que a devolução é feita com base em um rateio, dividindo o imposto devido pelo estabelecimento entre todos os que se candidatam a receber os créditos da NFP.
Ou seja, quanto mais gente participa do rateio, menos cada um receberá.
Valdir Saviolli, coordenador do programa da NFP, admite o problema.
“Estamos monitorando constantemente essas entidades que vêm apresentando crescimento enorme no volume de notas fiscais.” Ele concorda que essa prática vem acarretando prejuízos ao consumidor.
A reportagem da Folha tentou, sem sucesso, entrevistar o responsável pela gestão do Projeto Casulo. Enviou e-mail e telefonou. Também foi ao local, onde foi possível ver, debaixo de mesas, sacos de lixo de 50 litros lotados de notas fiscais.
Fonte: Folha de S.Paulo